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Foto: Felipe Souza/BBC Brasil |
Um cheiro
semelhante ao de um chiclete sabor melancia preenche o ambiente decorado com
luzes coloridas de neon. Grupos de amigos se divertem espremidos em bancos
enquanto fazem argolas no ar ao soltar a densa fumaça aspirada dos narguilés,
que passam de boca em boca.
Cenas como a descrita acima são comuns nas novas
tabacarias, que chegaram com força no Brasil e fazem sucesso entre jovens. Um
dos segredos desse negócio, segundo especialistas entrevistados pela BBC
Brasil, é que tanto o sabor das essências quanto as variedade de cores do
narguilé o deixam com uma imagem de produto quase inofensivo.
Entretanto, médicos dizem que ele é cerca de cem vezes
mais potente que um cigarro comum, um fato que chamou a atenção de governos
estaduais e federais, preocupados com o acesso precoce ao tabagismo.
Segundo a coordenadora de fiscalização da Lei
Antifumo da Vigilância Sanitária no Estado de São Paulo, Elaine D'Amico, nos
últimos dois anos houve um grande aumento no número de tabacarias voltadas para
o uso de narguilés. "A Lei Antifumo está em vigor desde 2009, mas as
tabacarias entraram no nosso cronograma de fiscalização recentemente porque
percebemos um grande crescimento desse nicho", conta.
Autoridades e especialistas ouvidos pela BBC Brasil
apontaram para riscos de saúde enfrentados por usuários pelo alto teor de
tabaco consumido, pela possibilidade de transmissão de doenças
infectocontagiosas através do compartilhamento da piteira do narguilé e também
pelo fumo passivo - caso de pessoas presentes nas tabacarias que respiram a
fumaça mesmo sem dar nem sequer um trago.
A BBC Brasil identificou farmácias, livrarias,
bares e até casas que fecharam nos últimos anos em todas as capitais
brasileiras para dar lugar a dezenas de tabacarias - a maior parte nas
periferias e perto de universidades.
Procurada, a Associação Brasileira da Indústria do
Fumo (Abifumo) informou que não acompanha o crescimento desse tipo de comércio
porque nenhuma empresa com foco no narguilé é associada.
'Cachimbo de água'
De origem oriental, o narguilé é, de maneira
simplificada, um cachimbo de água. O ar aquecido por carvão passa pelo fumo e
resfria no líquido antes de ser aspirado - e eliminado em seguida - pelo
usuário. O fumo, também conhecido como essência, é composto de tabaco e frutas
ou aromatizantes.
Em uma sexta-feira quente na noite paulistana, as
amigas Giovanna Caberlin e Julia Novaes, de 18 anos, dividiam um narguilé a
poucos metros da Universidade São Judas, na zona leste da cidade. A sessão de
fumo, que dura cerca de 40 minutos, foi o tempo necessário para preencher o
horário da primeira aula que, segundo elas, fora cancelada.
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Foto: Felipe Souza/BBC Brasil |
A rua onde as amigas estavam tem ao menos dez bares, mas
Novaes explica porque ela e a amiga escolheram justamente a tabacaria.
"Se a gente fosse beber, não poderia ir depois para
a faculdade. Eu já até deixei de ir para bares porque não tinham narguilé e
preferi ir para casa fumar com meus amigos", conta.
Novaes, que cursa publicidade e propaganda, diz que fuma
narguilé desde os 13 anos, mas que a prática hoje é "bem menos prejudicial"
porque o antigo carvão de pólvora foi substituído por um de fibra de coco. Ela
conta que sua essência preferida é a Love 66 - um mix de frutas com sabor
mentolado.
Quem comemora o êxito da Fumos Hooka Lounge, local onde
as amigas estavam, é o gerente e sócio Pedro Benedito de Borja, de 21 anos. Ele
disse que o sucesso é tão grande que já pensa em mudar de endereço.
"Faz um ano que abrimos e já estamos procurando um
lugar maior. É lotado assim todo dia, inclusive aos sábados, quando não tem
aula. Além de ser algo que une socialmente, é barato porque custa R$ 30 a
primeira sessão e R$ 10 cada vez que é recarregado", conta.
Tabacaria
ou bar?
As tabacarias se assemelham a bares ou lanchonetes, com
mesas e bancos ou cadeiras; os narguilés são colocados em posição central sobre
a mesa. Por lei, não é permitido servir comida ou bebida alcoólica nesses
locais.
São ambientes fechados em que o consumo de derivados de
tabaco, como charutos, cigarros e narguilés, é autorizado por lei - desde que
sejam respeitadas algumas determinações, com a existência de sistema de
ventilação.
Desde a implantação da Lei Antifumo em 2009, a Secretaria
da Saúde do Estado de São Paulo fez 1,7 milhão de inspeções em locais como
bares, restaurantes e tabacarias para coibir o tabagismo passivo - a inalação
da fumaça produzida pelo tabaco - e aplicou 3.854 multas.
Segundo a coordenadora de fiscalização da Vigilância
Sanitária, boa parte das irregularidades do tipo registradas no Estado ocorre
por causa da comercialização de narguilés por bares sem licença para tal.
Outra irregularidade comum é a de empresas com CNPJ para
atuar como tabacarias que vendem bebidas no mesmo espaço usado para consumo do
tabaco, o que é proibido.
As tabacarias são obrigadas a ter um sistema de exaustão
para a saída da fumaça e uma placa na entrada alertando para o consumo de
produtos fumígenos. Em caso de irregularidade, o comércio é autuado e pode ser
multado em R$ 1.253,50. Em caso de reincidência, o valor da punição dobra. Na
terceira vez, o estabelecimento é interditado por 48 horas, e na quarta,
fechado por 30 dias.
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Foto: Felipe Souza/BBC Brasil |
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o
tabagismo passivo é a terceira maior causa de morte evitável.
O Ministério da Saúde informou estar alerta para o uso de
narguilés por jovens. Em 2015, o foco da pasta foi justamente sobre os riscos
do uso de narguilé. Na época, o governo veiculou campanhas na televisão, fez
trabalhos em escolas e até intervenções em shoppings.
A intenção é desmistificar a ideia de que seu consumo é
inofensivo. Segundo especialistas consultados pela reportagem, o uso de
narguilé pode causar doenças respiratórias, coronarianas e alguns tipos de
câncer, como o de pulmão, boca, bexiga e leucemia.
Uso
social
De acordo com usuários e especialistas ouvidos pela BBC
Brasil, o tempo de preparo de um narguilé desestimula seu uso solitário e
frequente. Para eles, o instrumento de origem árabe faz parte de um
"estilo de vida criado para ser compartilhado com amigos".
Mas médicos alertam que o uso coletivo pode transmitir
doenças infectocontagiosas, como hepatite (inflamação no fígado), herpes e
tuberculose.
A montagem do narguilé começa com o acendimento do
carvão, que demora cerca de dez minutos. O tabaco com essência é colocado no
bocal, fechado com alumínio e depois furado para possibilitar a passagem do ar.
O carvão então é aceso e colocado em cima dessa estrutura.
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Foto: Felipe Souza/BBC Brasil |
A base, geralmente feita de vidro, é preenchida com água.
As mangueiras e bocais são conectados, e o equipamento está pronto para uso.
Quando o fumante puxa o ar, a fumaça é resfriada na água
antes de passar pelas mangueiras e chegar à sua boca e pulmões.
Especialistas dizem que alguns jovens que ainda trocam a
água que resfria a fumaça por bebidas alcoólicas, como vodca, e o tabaco por
maconha para tentar potencializar o efeito do narguilé.
A cardiologista coordenadora do Programa de Tratamento ao
Tabagismo do Incor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas), Jaqueline
Scholz, diz que o narguilé tem um alto teor de nicotina.
"Ele é uma porta de entrada para o cigarro ou
cigarro eletrônico. É uma forma antiga de fumar a que a indústria do tabaco
recorreu para que não tivesse essa imagem tão danosa", disse.
Para Scholz, o governo também deveria proibir o uso de
aromatizantes nas essências.
"O sabor torna esse uso mais agradável e atrai mais
gente. Você é atraído pelo cheiro, pela cor. Fora que existem leis e proibição
de uso para menores de idade que, pelo jeito não estão sendo cumpridas. Já vi
até pais dando narguilé para os filhos. Precisa é acabar com esse mito de que o
narguilé é seguro."
Para ela, o produto "hoje é vendido hoje com o mesmo
glamour que o cigarro no passado. Só depois descobriram o que é".
Tópicos:
SAÚDE