(Foto: Georgina Maynart) |
Georgina
Maynart, especial para o canal do CORREIO AgroBahia
Assim que a calda levanta fervura no tacho em cima do fogão
a lenha, a garapa, extraída da cana-de-açúcar, começa a receber sabores
inusitados. Ora gergelim, ora gengibre, maracujá, amendoim, cravo e canela. É a
rapadura temperada que começa a ganhar sabor. Chega a dar água na boca ainda no
preparo.
O cheiro da mistura se espalha pela Fazenda Cafundó do
Brejo. “A cada dia que passa a gente vai experimentando sabores. Não é todo
sabor que assenta com rapadura. Tem coisas que não adianta colocar. A gente faz
o experimento primeiro, depois passa para a agroindústria”, diz o produtor
rural João Batista.
Há 20 anos ele e a esposa, Adma da Silva, trocaram o
trabalho na cidade, no comércio, pela lida no campo e a produção rural.
Atualmente estão entre os maiores produtores de rapadura do Brasil.
Tudo começou quando o casal comprou 22 hectares de terra no
povoado de Colônia, município de Santana, no Oeste da Bahia. A propriedade já
tinha pés de cana. O cultivo é tradicional na região, não é de hoje que existem
no munícipio 40 alambiques para produção artesanal de cachaça.
Seu João também fabrica a mais brasileira das bebidas. Mas
o carro-chefe da fazenda sempre foi a rapadura. Outra tradição de Santana, que
possui 130 fábricas do doce espalhadas pelo município. “É muito rentável. Em um
hectare de cana, dá para produzir 10 a 12 toneladas de rapadura”,
justifica.
O quilo é vendido em média por R$ 6. João Batista
produz 720 quilos de rapaduras especiais por dia, 17 toneladas por mês. A
produção tem ainda um valor agregado: o cultivo da cana é orgânico, sem uso de
produtos químicos no manejo da lavoura. 80% da produção vai para Goiás, a
outra parte fica na Bahia.
Ao todo são fabricadas rapaduras de sete sabores, em
pedacinhos comedidos de três centímetros de largura. Quadradinhos de 20 gramas
que se desfazem na boca. São porções individuais, estrategicamente, fabricadas
para facilitar o consumo e dispensar o processo de quebra do doce, famoso pela
dureza.
Inovar é a estratégia do produtor rural, que está
fabricando também rapadura em pó, e se prepara para lançar, ainda este ano, o
sorvete de rapadura. “Eu gosto tanto do que eu faço, que fico doidinho para
mostrar novidades”, acrescenta.
A fazenda gera 70 empregos indiretos e renda para 20
famílias que participam do trabalho de produção, embalagem, distribuição e
venda.
Pelo sabor diferenciado, e apuro na textura, tem gente
considerando a rapadura da Fazenda Cafundó do Brejo um alimento gourmet. O
agricultor não costuma usar esta palavra de origem francesa para divulgar o
produto, mas defende que o doce tem potencial para ir mais longe.
“O sonho de todo mundo é romper as fronteiras, levar para o
mundo. Exportar. Um dia a gente pode chegar em algum lugar”.
Novos espaços
Foi-se o tempo em que a rapadura ocupava apenas as bancas das feiras livres e os mercadinhos de pequenas comunidades. Agora o doce típico do Nordeste tem espaço privilegiado, também, nas academias, em dietas recomendadas para atletas, e até na merenda escolar.
Apesar de possuir um alto valor calórico, o produto é rico
em vitaminas, proteínas e minerais, principalmente ferro. Segundo o
nutricionista Moisés Feitosa, o doce é ideal para pessoas que realizam
atividades de longa distância, com moderada a alta intensidade. “Por exemplo,
nos ciclistas que percorrem muitos quilômetros e realizam atividades acima de
duas horas, a rapadura funciona como repositor de energia para manter a
glicemia normalizada e preservar os músculos”, aponta.
O especialista destaca que a quantidade recomendada depende
de pessoa para pessoa, mas o ideal é uma barrinha pequena, um tablete,
aproximadamente do tamanho de uma balinha. “Em crianças em fase de crescimento,
o consumo de rapadura deve estar sempre associado com uma proteína”, alerta o
nutricionista.
Muito comparada com o sabor do açúcar mascavo, a rapadura
também é considerada mais saudável do que o açúcar comum, por ter mais
nutrientes. Para os adultos, Feitosa faz outro lembrete: “A rapadura é um
carboidrato de alto índice glicêmico, quer dizer que ele é rapidamente
absorvido pelo corpo. Se você ingere este carboidrato sem ter um gasto
energético, ou seja, sem realizar exercícios físicos, este excesso acaba se
transformando em gordura”.
Lei incentiva a produção artesanal
De olho no potencial econômico da produção artesanal brasileira, este mês o governo federal sancionou a Lei 13.680, que incentiva e facilita a comercialização de produtos artesanais no país, como a rapadura, os queijos e as cachaças.
A aprovação da lei era uma antiga reinvindicação da
Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil. Segundo o presidente do
Sistema CNA, o baiano João Martins, “a nova legislação vai beneficiar pequenos
e médios produtores, criando a oportunidade de diversificação de renda e
ampliação dos seus negócios”.
A nova Lei altera a antiga legislação - nº 1.283 de 1950. O
texto modifica o processo de fiscalização de produtos alimentícios de origem
animal, e permite, entre outros benefícios, a comercialização interestadual de
produtos artesanais.
Nome disputado
Em 1989 uma empresa alemã registrou o nome “rapadura” como marca exclusiva, tentando, desta forma, reservar para si o uso do nome na Alemanha e no mercado norte-americano, além do direito de propriedade intelectual e comercial sobre o termo.
Mas em 2005, o governo brasileiro e vários órgãos não
governamentais, entre eles a Ordem dos Advogados, exigiram a retirada da
exclusividade, alegando ser este um doce tradicional do Brasil e de outros países
da América Latina. Três anos depois, em 2008, a empresa alemã desistiu da
propriedade exclusiva sobre o nome.
Apesar de ser um dos doces mais populares na Bahia, não há
dados oficiais sobre a produção de rapadura no estado. No Brasil, o campeão é o
Ceará. A Índia é o maior produtor mundial de rapadura, seguida da
Colômbia.
História secular
Alguns historiadores defendem que a rapadura teve origem na região de Açores, um arquipélago transcontinental, de colonização portuguesa, no meio do Atlântico. Outros dizem que o doce teria surgido nas Ilhas Canárias, um arquipélago espanhol, também no Atlântico.
Controvérsias a parte, o fato é que o doce servia para
facilitar o transporte de açúcar pelos viajantes. Em longas distâncias, a
rapadura resistia a grandes mudanças de temperatura e não umedecia, como o
açúcar granulado.
No Brasil Colônia era produzido em pequenos engenhos de
açúcar, a partir da moagem da cana, seguida da fervura do caldo, colocação em
moldes de madeira e esfriamento. Processo que ainda hoje é usado na fabricação
da rapadura. O nome seria uma derivação do ato de raspar o tacho com o
açúcar já duro, “raspadura”, daí “rapadura”.
Rapadura do Sertão
Seja lá onde foi criada, a rapadura foi incorporada aos ingredientes básicos da cultura popular. Faz parte de milhares de histórias contadas sobre os homens do sertão. Vários escritores e historiadores, ao longo dos últimos cinco séculos, citam a presença do doce no cotidiano dos brasileiros.
Os enredos e roteiros antigos que descrevem a saga do nordestino
ao percorrer longas distâncias, frequentemente, incluem a rapadura entre os
mantimentos levados pelos vaqueiros e tropeiros dentro do alforje, a bolsa de
couro. O doce era considerado alimento essencial para o homem do campo, que
precisava percorrer caminhos difíceis em períodos de seca.
Destes tempos, ficou o costume de guardar a rapadura dentro
da farinha. Há quem consuma os dois alimentos juntos. Companheiros
inseparáveis em algumas regiões, a secura de um, se equilibra com a umidade do
outro.
Não é à toa, que o nordestino, doutor em prosa, em verso,
em dor e em sabor, não se contêm e fica sempre a lembrar do famoso ditado
popular: “A vida é como rapadura. É doce, mas é dura”.