A filha da paulistana Aynara Rodrigues ainda não completara
1 ano quando um susto seguiu-se ao outro: levada ao hospital para tratar de uma
febre que não passava, Sophia foi diagnosticada com anemia.
A mãe ficou sem entender. Animada e rechonchuda, a menina
nunca torcera o nariz para a comida, desde que começara a consumir alimentos
adicionais ao leite materno. Por isso, a hipótese da anemia nunca passara pela
cabeça de Aynara.
— A pediatra me perguntou se ela tomava sulfato ferroso
complementar à alimentação. Eu disse: “Não. Deveria?”.
A surpresa de Aynara é comum. No Brasil, estima-se que
entre 20% e 50% das crianças com até 5 anos sofram de anemia por deficiência de
ferro. A prevalência tem variações regionais.
— De maneira geral, a anemia infantil é um problema de
saúde pública subestimado em todo o país— diz a professora Célia Campanaro, do
Departamento de Hematologia e Hemoterapia da Sociedade de Pediatria de São
Paulo (SPSP).
Uma das maneiras de prevenir a doença é oferecer sais de
ferro para suplementar a dieta. O Ministério da Saúde recomenda a medida para
toda criança entre seis meses e 2 anos de idade.
Um novo estudo, realizado por uma equipe da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, sinaliza, no entanto, que poucas famílias seguem
o conselho. Ou o seguem mal.
Somente 5,6% das crianças de até 2 anos fazem essa
suplementação, uma parcela muito abaixo da meta perseguida pelo ministério — de
que pelo menos 50% delas consumam sais de ferro preventivamente. Isso, segundo
os pesquisadores, apesar das iniciativas do governo para facilitar o acesso ao
medicamento.
Efeitos subestimados
A equipe da professora Tatiane Dal Pizzol chegou a essa
conclusão depois de avaliar dados sobre 7,5 mil crianças de até 12 anos em todo
o país. As informações constavam na Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização
e Promoção do Uso Racional de Medicamentos (PNAUM).
Segundo o levantamento, que se baseou em entrevistas
domiciliares com os responsáveis pelas crianças, somente 1,8% do grupo tinha
consumido sais de ferro nos 15 dias anteriores ao inquérito. A frequência da
utilização cresce conforme cai a idade das crianças, mas é baixa em todas as
faixas etárias. No grupo com menos de 1 ano, aquele em que a utilização é mais
frequente, os sais de ferro são usados por 8,5% das crianças.
—Nós já esperávamos que a utilização de sais de ferro
estivesse aquém do necessário, mas ficamos surpresos com os resultados — diz
Tatiana.
A questão preocupa porque os efeitos da anemia no
desenvolvimento cognitivo são sérios e ainda subestimados. O ferro é essencial
para a formação das hemácias, as células sanguíneas responsáveis pelo
transporte de oxigênio.
O mineral também participa da formação de massa óssea e
muscular, e sua demanda aumenta durante a infância e a adolescência, períodos
de crescimento acelerado. A ausência de ferro pode provocar alterações
comportamentais, irritabilidade e prejudicar o sono da criança. No longo prazo,
causa impactos no desempenho escolar e na capacidade de aprender.
Para combater a anemia, o governo brasileiro adota, desde
2004, uma política de fortificação com ferro das farinhas de trigo e milho
produzidas no país. E, em 2005, criou o programa Nacional de Suplementação de
Ferro.
— Isso significa que deve haver sais de ferro disponíveis
gratuitamente nas unidades básicas de saúde — diz Célia.
Nem sempre o medicamento é fácil de ser encontrado. A
comerciante Solange Rocha descobriu isso logo que sua filha foi diagnosticada
com anemia. Na Unidade Básica de Saúde (UBS) que frequenta, em Guarulhos,
região metropolitana de São Paulo, o sulfato ferroso estava em falta.
— Felizmente, não é um medicamento caro. Tive que pagar do
meu bolso — diz.
As falhas de distribuição, no entanto, não bastam para
explicar os problemas de suplementação. Segundo as especialistas, pesam nessa
equação questões comportamentais: não é fácil convencer as crianças a aderir ao
tratamento preventivo. Os sais de ferro têm sabor metálico, que desagrada o
paladar dos pequenos. Podem causar um pouco de dor de barriga e provocar o
escurecimento das fezes.
— Esses efeitos adversos podem levar os pais a desistirem
da prevenção. Além disso, muita gente se pergunta por que deveria dar um
medicamento, todos os dias, para uma criança que está saudável — lembra
Tatiana.
Segundo ela, talvez seja hora de médicos e de o próprio
Ministério da Saúde mudarem de estratégia para facilitar a adesão ao
tratamento. Em lugar de consumo diário, receitar suplementação intermitente.
— Já há estudos demonstrando que o consumo dos sais de
ferro três vezes por semana, em lugar de diariamente, é eficiente para proteger
contra a anemia — diz.
Na casa de Aynara, o susto já foi superado. Hoje, diz ela,
Sophia se acostumou às doses diárias do remédio, que ela toma pouco antes de
comer, sem nem fazer careta:
— Quando demoro a dar, ela até estranha. Faz bico. Agora,
já está saudável de novo.
Agência O Globo