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Agência O
Globo
Uma aplicação
de gás que prometia curar de dor nas costas a varizes, passando por
infertilidade, atraía os pacientes à Clínica Bem Viver, no interior de São
Paulo. Mas a ozonioterapia ministrada pelo mineiro Raphael Gustin da Cunha, de
36 anos, em alguns casos piorava a situação de seus clientes. Agora, Cunha, que
não respondeu aos pedidos de entrevista e cujo consultório já não funciona,
está sendo processado sob acusação de exercício ilegal da medicina, falsidade
ideológica e violação sexual mediante fraude.
Dez pessoas
que passaram por sua clínica relataram ao GLOBO que Cunha ora se apresentava
como nutricionista, ora como nutrólogo ou homeopata — estas duas,
especialidades médicas. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM) e os
conselhos regionais de nutricionistas em São Paulo e Minas, Cunha não tem
permissão para exercer nenhuma das duas profissões.
Uma dessas
pacientes já entrou na Justiça contra o mineiro, nas esferas civil e penal. Os
outros clientes, homens e mulheres, estudam que medidas tomarão. Eles foram
atendidos nos últimos dois anos em dois locais: em 2017, Cunha atendia em
Taubaté; em 2018, em Santo Antônio do Pinhal. Ambos os consultórios foram
fechados.
Sob condição
de anonimato, a paciente afirmou ao GLOBO ter sofrido violência sexual. Segundo
ela, que o procurou no início de 2018, após receber um panfleto na rua, Cunha
fez aplicações retais de ozônio para tratar uma insuficiência suprarrenal.
— Ele
costumava colocar um cateter e aplicar o gás com uma seringa ou com uma
mangueira. Da última vez, doeu muito. Ele riu das minhas reclamações. Nunca
mais voltei. Na época, eu não sabia dizer o que tinha acontecido, só me sentia
suja, confusa e culpada. Hoje sei e posso dizer: sofri um estupro na sala de
atendimento.
Para a
advogada que a representa, a violação se deu mediante fraude pelo fato de Cunha
não ser médico nem nutricionista:
— O contexto
em que ocorreram a prestação de serviço, o contrato financeiro e o
descumprimento da obrigação permite à requerente o pedido de instauração de
inquérito policial para apuração de mais de um crime que, se resultarem em
condenação em ação penal, podem levar a pena privativa de liberdade do réu —
afirma Tula dos Reis Laurindo.
Outra mulher
que frequentou a clínica disse ter sido sexualmente abusada:
— Comecei
trabalhando lá como secretária, então ele soube que eu estava tendo dificuldade
para ter filhos. Me disse que, se fizesse um tratamento, em três meses
engravidaria. Ele colocava o dedo na minha vagina e depois introduzia uma
mangueira de ozônio.
O presidente
da Associação Brasileira de Ozonioterapia (Aboz), Arnoldo de Souza, explica que
o tratamento pode ser feito de várias formas, mas nunca com uma mangueira.
— Há, sim,
injeção de gás por via anal ou vaginal, mas feita com uma seringa. A
ozonioterapia precisa ser regulamentada para que o CFM possa fiscalizar e
evitar casos de charlatanismo e abuso.
Efeitos
colaterais
Os demais
relatos feitos ao GLOBO reúnem outros tipos de queixa, incluindo efeitos
colaterais como ardências e descamações na pele, dores de cabeça e no corpo,
falta de ar e cansaço.
Em um
tratamento para dores nas costas, por exemplo, uma paciente afirmou que “sentia
o gás correr por toda a coluna, a dor ia até o pescoço”.
— Um dia,
não consegui dormir por causa do incômodo, levantei para pegar água e desmaiei.
Fiquei preocupada e fui pesquisar o número do registro de nutricionista com o
qual ele assinava as receitas. Descobri que não havia aquele registro no banco
de dados do conselho regional. O questionei sobre isso e ele me ameaçou. Fiquei
com muito medo.
O paciente
Marco Aurélio Grandchamp contou ter feito três sessões de “hemoterapia”:
segundo ele, Cunha tirava sangue de seu braço, passava-o por um equipamento
para misturá-lo com o gás, e o devolvia ao corpo com uma injeção intramuscular.
A terceira sessão foi na casa de Cunha, em Taubaté:
— Ali, ele
mostrou não respeitar nenhum preceito de higiene. Não usou luvas, não tinha
material descartável. Fico pensando quais riscos de contaminação eu corri.
Outra
paciente afirmou ter procurado a clínica com seu ex-marido, para que cada um
fizesse dois pacotes de dez sessões, em 2018.
— Pelo
primeiro pacote, pagamos juntos em torno de R$ 2 mil; pelo segundo, meu
ex-marido pagou R$ 1 mil e eu, que tinha outros tratamentos, paguei R$ 4 mil.
Dessa leva, fizemos apenas duas sessões. Depois disso, eles pararam de atender
o telefone. Fui à clínica e me surpreendi ao encontrá-la completamente fechada
e abandonada. Ele sumiu.