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Mário Bittencourt, De Vitória da Conquista (BA) para
a BBC Brasil
O apicultor Luiz Jordans Ramalho Alves pode não ter sido
o único motorista do Brasil que não passou aperto durante a greve dos
caminhoneiros. Mas difícil é achar um que, a exemplo dele, ande por aí com o
tanque cheio de etanol caseiro feito a partir do mel.
O apicultor de 46 anos é autossuficiente em etanol desde
2015, quando, por insistência em aproveitar todo o descarte do mel, acabou
descobrindo que era possível obter o combustível a partir do produto.
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A experiência de Jordans, morador de Vitória da
Conquista, no sudoeste da Bahia, é inédita no Brasil, segundo engenheiros da
área química, mecânica e estudiosos de biocombustíveis no país consultados pela
BBC Brasil.
Na zona rural de Barra do Choça, cidade de 34 mil
habitantes vizinha a Vitória da Conquista, Jordans possui um entreposto por
onde passam de cerca de 10 toneladas de mel por mês. Na mesma área, ele tem
ainda mais de 100 mil pés de café.
O mel vem de seus apiários e de 10 cidades da Bahia,
Estado cuja produção é de 3,5 mil toneladas ao ano, ou 9% da produção nacional,
segundo dados referentes a 2016, os mais recentes divulgados pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
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Reaproveitamento
O mel que chega ao entreposto de Jordans é comercializado
em mercados de cidades da região sudoeste da Bahia, e do volume produzido
sempre acaba voltando para o apicultor entre 0,5 e 1% de mel, chamado de
descarte.
“Eles voltam por pequenos defeitos, como uma embalagem
que trincou e gerou risco de contaminação, então, recolhemos para manter o
controle de qualidade do mel”, disse.
Descartar mel no meio ambiente, conta o apicultor, é um
risco às próprias abelhas, pois elas podem consumir o produto fermentado e
acabar morrendo, o que prejudicaria a atividade.
Jordans é apicultor há quase 30 anos, mas o descarte só
virou preocupação maior nos últimos dez anos, quando no entreposto aumentou seu
movimento para 10 toneladas mensais.
Em 2012, ele contratou uma consultoria que o auxiliou a
montar um projeto sobre aproveitamento do descarte para produzir extratos de
mel, como álcool etílico (conhecido como alimentício ou nobre) e, com isso,
fazer cachaça ou aguardente de mel.
Enviado para a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da
Bahia (Fapesb), o projeto foi aprovado com verba de R$ 185.052,40 para o
apicultor, que usou o dinheiro para comprar os equipamentos necessários ao
processo de produção do álcool etílico.
O financiamento público ocorreu por meio de uma proposta
da fundação de abrir a pesquisa para empresas. A consultoria entrou como
responsável técnica da pesquisa, já que o apicultor não é da área – é
especialista em apicultura, com diversos cursos realizados, e tem formação
técnica em administração.
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Produção caseira
Depois que conseguiu o financiamento da Fapesb, Jordans
montou no entreposto de mel, sua segunda casa, um pequeno laboratório para
obtenção da aguardente. No processo químico, o descarte entra em fermentação
num tanque de 250 litros durante 5 a 15 dias.
Nesse período, ocorre a primeira destilação do álcool,
que dura 24 horas. É daí que surge o álcool etílico, que rende por ano mais de
600 litros, usado por Jordans para fazer aguardente de mel e comercializar por
R$ 60 a garrafa de meio litro – valor cobrado ainda hoje.
Ele ainda usa a mesma aguardente para fazer licores de
café e chocolate, o que lhe rende uma renda extra neste mês de junho, de muitos
festejos relacionados ao São João em todo o Nordeste.
O financiamento da Fapesb durou até 2014, mas, apesar de
satisfeito por estar produzindo álcool etílico e faturando mais, Jordans se
sentia incomodado por ver que 30% do descarte não estava sendo aproveitado para
nada. Ele decidiu continuar as pesquisas por conta própria, fazendo aguardente
e estocando o que restava.
Até que, em 2015, teve a ideia de enviar o produto
restante para testes num laboratório de Salvador, que apontou que o líquido
tinha graduação alcoólica de 80%, próximo às normas da ANP (Agência Nacional de
Petróleo) para o etanol hidratado, utilizado em veículos – que deve ter 94,5%
de álcool.
“Fiz um teste com meu carro e funcionou”, disse Jordans,
informando em seguida que notou redução da potência do motor do veículo
enquanto rodava.
“Ele perde força, sobretudo em ladeiras ou durante
ultrapassagens, aí tem de pisar mais no acelerador. Com o álcool hidratado, da
cana-de-açúcar, o carro faz 7 km com um litro, e com esse meu álcool de mel
chega a 5 km”, ele contou.
Por semana, Jordans produz cerca de 50 litros de etanol,
mas não vende nenhum – e nem poderia, porque seu produto não atende às normas
da ANP. “Mas o que tem de amigo querendo que eu venda não dá nem pra contar.
Para uso em veículo, só no meu”, declarou.
Mercado potencial
Se estivesse dentro das normas, Jordans até poderia
comercializar seu álcool como produtor independente. Isso é permitido pela
Resolução Nº 19, de 15 de abril de 2015, da ANP, sobre as regras da produção,
comercialização e especificação do etanol hidratado e o anidro, misturado à
gasolina.
Mas oapiculto não pensa em produzir para vender. O
objetivo dele, aproveitar todo o descarte do mel, já foi alcançado. O produto,
que é uma fonte de energia limpa, vem sendo utilizado no carro que ele divide
com a esposa e em outros dois da empresa, todos flex.
Durante a greve dos caminhoneiros, enquanto em Vitória da
Conquista, assim como em outras cidades do Brasil, já não havia combustível na
maioria dos postos, Jordans “ostentava” 200 litros de etanol de mel em casa – e
levou parte do estoque às ruas para gravar um vídeo abastecendo seu veículo.
“Nós estamos aqui nesse momento de crise no
abastecimento, nós também temos essa dificuldade, mas estamos encontrando
parcialmente a solução”, dizia ele, antes de despejar 20 litros no tanque. “Dá
até para sentir o cheirinho de mel.”
A satisfação maior do apicultor é saber que o mel está
sendo todo aproveitado. “É uma responsabilidade ecológica minha não realizar
mais o descarte, não quero parar nunca mais com isso”, acrescentou.
Aperfeiçoamentos
O etanol que o apicultor produz pode ser melhorado com
algumas técnicas não muito difíceis para atender ao nível de exigência da ANP,
no que se refere à graduação alcoólica, informa a engenheira química Sabrina
Neves Silva.
“No caso de processos físicos, uma redestilação poderia
aumentar um pouco o rendimento”, ela diz. “Contudo, o mais indicado seria uma
destilação azeotrópica, diferente da destilação comum.”
Em termos simples, a destilação azeotrópica consiste em
adicionar um terceiro componente à mistura álcool/água, que teria mais
afinidade química com a água, extraindo esta substância do etanol.
“Já em processos de separação químicos, seria possível
utilizar óxido de cálcio ou carbonato de potássio, por exemplo”, completa
Sabrina, doutora em engenharia e professora do curso da Engenharia de Energia
da Universidade Federal do Pampa, no Rio Grande do Sul.
O engenheiro mecânico Lourenço Gobira Alves, doutor em Engenharia Mecânica e professor e chefe do departamento do mesmo curso na Universidade Federal da Bahia (Ufba), acredita que o etanol de mel funcione bem caso passe, antes, por esse processo de melhoria.
“Nas condições atuais, provoca redução da potência do
motor e opera com maior dificuldade de combustão”, acrescenta, atestando o que
o apicultor já vem sentindo na prática.
Outro problema que Gobira observa no etanol de mel feito
atualmente é a porcentagem alta de água, que faz o carro ter problemas na
partida, principalmente em locais com baixas temperaturas, como é o caso de
Vitória da Conquista, conhecida pelo apelido de “Suíça baiana”, devido ao
rigoroso frio.
“Talvez haja dificuldade para dar partida no motor pela
manhã”, comenta o engenheiro, para quem “uma iniciativa como esta, de produzir
etanol a partir do mel, é muito mais que bem-vinda, tem de ser explorada e
conhecidos os seus limites.”
“Quem sabe”, reflete Gobira, “não vamos ter o meltanol”.
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