Para ajudar com vacina, 1.700 voluntários decidem se infectar de propósito com Covid-19

SÃO PAULO – Um grupo independente baseado nos EUA está angariando voluntários que aceitem ser infectados deliberadamente com o novo coronavírus para acelerar o teste de uma vacina contra a doença. Batizada de 1 Day Sooner, a iniciativa angariou mais de 1.700 voluntários em mais de 40 países, em menos de um mês, mesmo antes de existir uma vacina pronta para teste de eficácia.
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Foto reprodução
Ensaios clínicos com infecção deliberada de voluntários, chamadas no meio de pesquisa de “estudos de desafio humano”, já foram usados em pesquisas de doenças de baixa letalidade, e não são muito comuns. A ideia de viabilizá-los agora ganhou força após um artigo do epidemiologista Marc Lipsitch, da Universidade Harvard, defender que pesquisas nesse molde sejam feitas com imunizantes candidatos que surgirem contra a Covid-19.
A ideia do 1 Day Sooner é ajudar cientistas a acelerarem a fase 3 de um eventual teste clínico, a etapa mais demorada, responsável por provar a eficácia da vacina. As fases 1 e 2 têm como função avaliar segurança e produção de imunidade, e não se beneficiariam de uma eventual infecção.
O problema de esperar por uma vacina desenvolvida com um teste de fase 3 normal é que o produto precisa ser aplicado em milhares de pessoas, e a eficácia só pode ser avaliada no caso daqueles que se infectarem inadvertidamente.
“Isso pode ser tanto complexo quanto lento”, afirma o manifesto divulgado pelo 1 Day Sooner, liderado por Josh Morrison, diretor da ONG Waitlist Zero, que promove doação de órgãos. “Muitas pessoas tentarão ser cuidadosas durante o surto — praticando autoisolamento, por exemplo — e pode passar muito tempo e ser preciso um grande número de voluntários até que um teste de fase 3 produza resultados significativos.”
A ideia do estudo de desafio é tomar um atalho, explica o manifesto: “Se todos os participantes de um estudo forem expostos ao patógeno em condições extremamente controladas, poderíamos necessitar de um número muito menor de voluntários e, com sorte, desenvolver uma vacina segura, efetiva e amplamente disponível num período de tempo muito mais curto.”
No site que o projeto 1 Day Sooner colocou no ar (1daysooner.org), quem estiver disposto a se listar como voluntário pode preencher um formulário e deixar seus contatos. O cadastro pode vir a ser usado, no futuro, por pesquisadores que buscam participantes para um estudo de desafio.
Ensaios clínicos desse tipo são difíceis de articular porque a avaliação de comitês de ética em pesquisa e as salvaguardas jurídicas são complicadas de negociar. No início do século 20, vacinas de varíola e gripe chegaram a ser testadas em esquema de desafio, mas a abordagem acabou caindo em desuso à medida que as padrões éticos para pesquisa foram ficando mais rigorosos.

Direito ao risco

Na base da discussão sobre um eventual teste de desafio com Covid-19 estão duas questões: a avaliação de risco e o direito de indivíduos de se submeterem a esse risco. Lipsitch, de Harvard, defende que a emergência e a dimensão da epidemia de Covid abrem espaço para essa abordagem.
“Obviamente, desafiar voluntários com esse vírus vivo arrisca induzir doença severa e, possivelmente, até a morte”, ponderam o epidemiologista e seus coautores no artigo em que defenderam a estratégia, no “The Journal of Infectious Diseases”. O texto também é subscrito pelo imunologista Peter Smith, de Harvard, e pelo bioeticista Nir Eyal, da Universidade Rutgers.
“Apesar disso, nós argumentamos que esses estudos, ao acelerarem a avaliação de vacinas, poderiam reduzir o fardo global da mortalidade e mortalidade relacionadas ao coronavírus. Voluntários nessa pesquisa poderiam assumir os riscos para si de maneira autônoma, e o risco coletivo pode ser aceitável, caso participantes consistam em adultos jovens e saudáveis, que estão em risco relativamente baixo de doença severa.”
O nome do projeto 1 Day Sooner (“1 Dia Mais Cedo”, em inglês) se refere a estimativas que o grupo apresenta de quantas vidas podem ser salvas no mundo caso a distribuição de uma vacina seja antecipada.
“Suponha que uma a cada 2.000 pessoas no mundo sejam infectadas com Covid-19 todo dia. Caso uma vacina evite que apenas 0,5% dessas pessoas morram, antecipar a produção de uma vacina em um único dia salvaria 19.500 vidas”, escrevem Morrison e sua equipe.
Caso um estudo de desafio com infecção deliberada e controlada antecipe a produção de uma vacina em apenas 3 meses — o que é uma expectativa razoável — o número de pessoas salvas seria da ordem de 1,5 milhão, estima o projeto.
Rafael Garcia / O Globo

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