Em menos de
cinco anos, o animal que se tornou símbolo do sertão pode desaparecer da
paisagem nordestina. Usado na produção de remédios e cosméticos na China, a
exportação coloca em risco a espécie.
O mestre
Luiz Gonzaga deu-lhe o título de “maior desenvolvimentista do sertão”, na
canção “O jumento é nosso irmão” (autoria de José Clementino).
Já Chico
Buarque teve que reconhecer, no musical “Os Saltimbancos”, que, afinal, não era
mesmo o “jumento o grande malandro da praça”, pois “trabalha, trabalha de graça”.
Também chamado de jegue, asno ou jerico, qualquer alcunha que se escolha para o
animal de origem africana, introduzido no Brasil pelos portugueses, esta
remeterá sempre à estultice, à parvoíce. Historicamente, porém, ele tem papel
fundamental no desenvolvimento agrícola do país, principalmente no Nordeste.
Antes da chegada das máquinas, era o grande aliado do homem do campo na lida
diária, transformando-se em patrimônio cultural e símbolo do agreste
brasileiro.
Nos últimos
anos, no entanto, o simpático jumento começou a sumir da paisagem sertaneja,
desde que os chineses passaram a importar o animal do Brasil. Segundo
especialistas, o risco de extinção tornou-se iminente. Estima-se que em menos
de cinco anos a espécie pode desaparecer. A China tem interesse,
principalmente, no couro, matéria prima para a produção do ejiao, uma gelatina
usada na medicina e em cosméticos.
A carne é um
subproduto, consumido no Norte do país asiático. Calcula-se que a demanda por
jumentos na China gire em torno de cinco milhões de cabeça por ano,
movimentando um mercado de cerca de R$ 22 bilhões. A ironia é que o Brasil
entrou nessa conta sem sequer ter quantidade suficiente de animais para
exportação. Em 2012, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
contabilizara uma população de apenas 902 mil jumentos, 877 destes vivendo no
Nordeste.
A sorte dos
jumentos brasileiros começou a ser traçada em 2016. Naquela altura, a Agência
Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia (ADAB) resolveu definir os critérios
para o abate legal de equídeos. A partir daí, instituiu-se a matança para a
exportação. Calcula-se que, desde então, cerca de 100 mil jumentos tenham sido
mortos nos três frigoríficos autorizados pelo governo federal, nos municípios
de Amargosa, Itapetinga e Simões Filho. O risco de extinção deve-se ao fato de
que não existe criação de jumentos para o abate, como acontece com o gado, por
exemplo. Os sertanejos capturam animais soltos ou domésticos para vender para
atravessadores e fazendeiros.
Após perder
a utilidade no campo, substituído por motos e equipamentos industriais, o
jumento passou a ser descartado, simplesmente solto nas estradas, causando
acidentes. Por isso, a princípio, a ideia de exportar soou como bálsamo para as
autoridades. Mas não demorou muito para que se percebesse a crueldade por trás
da aparente saída. O sofrimento do animal começa logo na captura. Levados em
caminhões sem nenhum suporte para esse tipo de transporte, os jumentos viajam
centenas de quilômetros sem direito a água e alimentação. Isso porque, segundo
Eduardo Aparício, membro da União Internacional Protetora dos Animais (UIPA), a
carne do animal não é o principal foco dos chineses e sim a pele, o que torna
evitável para a cadeia os custos com alimentação.
As denúncias
de maus tratos se amontoam. No mesmo ano de 2016, o Ministério Público da
cidade de Miguel Calmon recebeu representação criminal contra o abate de
jumentos. Na ocasião foram realizadas inspeções em um frigorífico que foi
multado e recomendada pelo MP a suspensão do abate após verificação de
irregularidades nas instalações e em seu funcionamento. Em 2017, a comarca de
Amargosa também recebeu denúncias e, em 2018, o mesmo fato aconteceu em
Itapetinga e Canudos, onde cerca de 200 jumentos que seriam abatidos morreram de
fome em uma fazenda do município, enquanto outros 800 animais caminhavam para o
mesmo fim. As ações foram representadas pelas entidades União Defensora dos
Animais – Bicho Feliz e Fórum Animal, participantes da Frente Nacional de
Defesa dos Jumentos (FNDJ).
“Os jumentos
são capturados ou comprados, amontoados em caminhões, depositados em fazendas
sem comida e água, o que gera enorme sofrimento dos animais”, comentou a advogada
Gislane Brandão, da FNDJ.
Em 2018, a
juíza Arali Maciel Duarte, da 1ª Vara Federal de Salvador, concedeu decisão
liminar proibindo o abate de jumentos na Bahia, em resposta à Ação Civil
Pública movida por diversas entidades, entre elas Bicho Feliz, Fórum Animal,
REMCA e SOS Animais de Rua (Frente Nacional de Defesa de Jumentos). A liminar,
porém, durou pouco.
Em setembro
de 2019, foi suspensa pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, sob a
alegação de que a restrição se caracterizava como “duríssima e de gravíssimas
consequências e alto impacto econômico para o comércio estadual e,
consequentemente, para a economia pública nacional”. De acordo com a Assessoria
de Comunicação do TRF 1ª Região o processo está concluso para decisão
aguardando julgamento.
CHINA: Mas o
que torna o animal tão cobiçado pela China? Anualmente, para produzir 5.600
toneladas do ejiao, são necessários 4,8 milhões de peles de jumento – e esse
índice cresce 20% por ano. Ou seja: não há, no país asiático, animais
suficientes para sustentar o mercado. Segundo a Organização das Nações Unidas
para a Alimentação e a Agricultura (Food and Agriculture Organization of the
United Nations, FAO), em 1992, havia mais de 11 milhões de jumentos no país,
representando o maior rebanho do mundo. Já, em 2017, a estimativa foi que esse
número havia diminuído em mais da metade, não ultrapassando 4,6 milhões de
jumentos. Mas esse número pode ser ainda mais baixo, cerca de 2,6 milhões de
acordo com o Anuário estatístico da China para 2017. Por isso, a necessidade de
importar de outros países. Inclusive do Brasil.
“Os jumentos
vivem de 30 a 35 anos. Antes de serem substituídos por máquinas, sua utilidade
no campo era de grande valor comercial, pois auxiliavam na produção e trabalho
nas fazendas, devido à sua resistência ao trabalho”, destacou Chiara Albano,
zootecnista e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Hoje, sem
utilidade, acabam sendo descartados. E o que temos visto ao longo desses anos é
que, com o abate do jumento, o animal corre grande risco de extinção. Nessa
escala, pode estar extinto em quatro anos”.Não foi fácil, mas estamos
conseguindo fazer com que as pessoas entendam aquele espaço como um local de
cuidados e preservação” Eduardo Aparício Membro da União Internacional
Protetora dos Animais (UIPA)
SAÚDE: Além
da crueldade envolvida no abate de jumentos, outra questão toma notoriedade:
trata-se do surto de mormo, espécie de anemia infecciosa, que atinge os
equídeos, podendo também ser transmitida para humanos. O contágio pode
acontecer por meio do contato com pus, secreção nasal, urina e fezes do animal.
Segundo a ADAB, os últimos casos registrados ocorreram em Euclides da Cunha e
Feira de Santana, onde animais infectados com a doença foram sacrificados.
“A liberação
do abate dos jumentos no país, além de inaceitável, gerando sofrimento aos
animais e sua extinção, representa um risco à saúde da população e a outros
animais, já que ao contrário do que diz a ADAB, o mormo não foi controlado”, afirmou
Gislane Brandão, da FNDJ.
“Dezenas de
animais foram confirmados positivos para mormo no rebanho apreendido em
Euclides da Cunha/Canudos (BA). Centenas de animais morreram em Itapetinga (BA)
de forma extremamente cruel, com manejo violento, além de muitos animais
agonizando e mortos serem mantidos juntamente com os vivos, sem qualquer
cuidado e alimentação enquanto aguardavam o transporte para o abatedouro,
muitos acometidos por doenças contagiosas, e os produtos originários desse
abate foram exportados em 2018”.
RESGATE: O
bom exemplo vem do Ceará. Na cidade de Santa Quitéria, a 220 quilômetros de
Fortaleza, fica o Parque Padre Antônio Vieira, que abriga cerca de três mil
jumentos, em área de 500 hectares. Considerada hoje um santuário, a fazenda, a
princípio, funcionava como um depósito de jumentos recolhidos nas estradas do
estado. Sem alimentação ou cuidados, a maioria acabava morrendo. Foi então que
Geuza Leitão, presidente da União Internacional Protetora dos Animais, em
parceria com o Ministério Público e o Detran/CE, resolveu arregaçar as mangas,
conseguindo firmar um termo de ajuste de conduta para garantir o bem-estar dos
jumentos capturados.
“Junto com a
União Internacional de Proteção dos Animais (UIPA), do qual faço parte, criamos
a ideia de um parque de turismo que poderia servir para o recolhimento do
animal, pesquisa dos hábitos e cuidados. Hoje a taxa de mortalidade diminuiu
consideravelmente, os animais têm um tratamento digno, recebendo alimentação,
água, vacinas”, comentou Aparício. “Não foi fácil, mas estamos conseguindo
fazer com que as pessoas entendam aquele espaço como um local de cuidados e
preservação”.
O local
recebeu o nome de Parque de Proteção Padre Antônio Vieira numa justa homenagem.
Homônimo do português que se tornara um dos nomes mais influentes da colônia,
no século 17, o pároco foi um grande defensor dos animais e escreveu o livro
que inspirou Luiz Gonzaga: “O Jumento, Nosso Irmão”. Por 30 anos, ele coordenou
o Clube Mundial dos Jumentos que chegou a receber apoio da atriz e ecologista
francesa Brigitte Bardot. “O padre dizia: ‘A situação é triste porque tudo que
existe neste Nordeste foi feito no lombo do jumento’”, comentou José Dimas de
Almeida, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Miguel.
Ascom CHBSF