Antônio Jorge saiu cedo de
Salvador para ajudar nos preparativos no sítio da família, em Cachoeira.
Romenil e seu filho Natan compraram fogos de artifício antes percorrer meia
Bahia para chegar em Canavieiras, sul do estado.
Armando passou as últimas semanas
cortando lenha e montando fogueiras para vender na beira da estrada, em
Governador Mangabeira. Enquanto isso, em São Gonçalo dos Campos, Osvaldo colhia
jenipapos nos fundos do sítio para produzir o próprio licor artesanal para
brindar em homenagem ao santo.
Pelo segundo ano consecutivo,
a pandemia da Covid-19 impediu a realização de festas nas praças das cidades do
Nordeste para comemorar o São João. Mas não há vírus neste mundo que faça
morrer uma tradição.
As fogueiras estavam nas
portas das casas mesmo com a orientação das prefeituras para evitá-las.
Bandeirolas enfeitavam as ruas, as mesas com as comidas típicas foram postas e
até mesmo as guerras de espadas, perigosas disputas pirotécnicas, não deixaram
de acontecer.
Em Cruz das Almas, cidade do recôncavo
baiano que faz uma das maiores festas de São João da Bahia, a pandemia forçou
um reencontro com um estilo mais tradicional de comemorar o ciclo junino.
Fosse um ano normal, as ruas
da cidade estariam lotadas -no período de São João, a população da cidade de 63
mil habitantes praticamente dobra. A maioria vem atraída pelas grandes festas
-as públicas, nas praças, e as particulares, em fazendas- comandadas pelos
principais artistas e bandas de forró do momento.
Neste ano, contudo, o
movimento na praça principal era como o de um dia normal. Não fossem pelas
fogueiras nas portas das casas e pelas placas de madeira instaladas nos portões
para proteger as casas dos fogos de artifício.
Na rua da Estação, epicentro
da festa, fogueiras se enfileiravam. Os decretos que proíbem aglomerações não
arrefeceram os ânimos dos adeptos da guerra de espadas, disputa de pirotecnia
que costuma ganhar as ruas da cidade durante o período junino, deixando uma
legião de feridos com queimaduras.
A prática é oficialmente proibida
desde 2011, mas nem mesmo a pandemia fez com que ela deixasse de acontecer em
diversos bairros da cidade.
Um dos adeptos mostrava, na
porta de casa, o rescaldo do dia anterior: marcas de pólvora nos muros e uma
queimadura em sua perda direita. Com um copo de licor na mão, preparava-se para
a nova disputa que aconteceria à noite, quando a polícia não estivesse por
perto.
Em Cruz das Almas, o ciclo
junino remonta a uma tradição de mais de 100 anos e começa do no dia 1º de
junho, quando uma alvorada marca a chegada do mês mais aguardado do ano.
Sem as festas, a prefeitura
incentivou que as comemorações ficassem restritas a dentro das casas. Montou
uma rede de solidariedade para apoiar empresas e pessoas cuja renda depende do
ciclo junino. Para manter a chama do forró acesa, definiu uma programação de
lives com artistas locais.
Ainda assim, houve
movimentação para a realização de festas clandestinas. Um bloco junino que
aconteceria nesta quinta-feira (24) foi descoberto pela Polícia Civil, que
apreendeu 142 camisas personalizadas da festa.
Em Cachoeira, cidade histórica
nas margens do rio Paraguaçu, as pousadas e hospedarias estavam cheias mesmo
sem uma programação de shows. Os visitantes vieram de outras cidades para
reencontrar os familiares e comemorar o São João na zona rural da cidade.
O eletrotécnico Antônio Jorge
Souza veio de Salvador. No início da tarde desta quarta (23), já estava no
balcão do comerciante Roque Amorim, 64, degustando um licor de jenipapo
fabricado no próprio local. Mais tarde, seguiria para a roça. Mas destacou que
a comemoração seria restrita à família.
"Vamos acender uma
fogueirinha, tomar um licorzinho, comer um amendoim cozido, assar um milho na
fogueira. E ficar batendo papo, relembrando de meu pai, dos tempos passados.
São João é uma festa família", afirma Souza.
A tradição do reencontro fez
com que o comércio de produtos típicos se mantivesse intacto. Na fábrica de
licor artesanal Roque Pinto, em Cachoeira, as vendas até cresceram em relação a
anos anteriores: foram cerca de 100 mil litros de licor produzidos apenas para
o período junino.
Na véspera do São João,
clientes faziam fila no balcão da fábrica para comprar licores de mais de uma
dezena de sabores que vão dos tradicionais de jenipapo e passas aos mais
elaborados de chocolate, açaí e pimenta.
"O pessoal continua
comprando e degustando licor, por incrível que pareça. Nossas vendas foram
maiores na pandemia. Parece que o pessoal, em casa, está bebendo mais",
afirma Rosival Pinto, proprietário da fábrica familiar que existe há mais de
100 anos.
Em cidades como Cruz das Almas
e Governador Mangabeira, os barracões de fogos de artifício também tinham filas
de clientes para comprar desde as inocentes chuvinhas e traques de massa até as
girândolas de 156 tiros.
Na estrada entre Salvador e
Canavieiras, Romenil Pinto, 52, e o seu filho Natal, 7, fizeram uma parada para
comprar os fogos de artifício. "Estamos indo para a roça encontrar a
família", afirma.
A movimentação rumo ao
interior e os reencontros familiares são um dos principais alvos de preocupação
do governo baiano, que no ano passado registrou uma explosão de novos casos da
Covid-19 em pequenas cidades após o ciclo junino.
Para evitar uma movimentação
nas estradas, o governo suspendeu temporariamente o transporte intermunicipal
de passageiros nos ônibus, deixando as estações rodoviárias vazias. Mesmo
assim, as estradas estavam cheias de carros. Durante toda a quarta-feira,
véspera de São João, foi intenso o movimento na BR-324, principal saída de
Salvador para as cidades do interior.
O governo da Bahia estima que
1,5 milhão de pessoas deixaram de viajar para municípios do interior baiano no
período dos festejos juninos esse ano. Ainda assim, nas pequenas cidades,
famílias e prefeituras trabalharam para manter a tradição acesa, não raro
gerando conflitos.
Em São Gonçalo dos Campos (115
km de Salvador), a prefeitura preparou uma programação de forró itinerante: um
típico trio nordestino com sanfona, triângulo e zabumba percorreria as ruas da
cidade em cima de um carro de som, com a orientação de que as pessoas
permanecessem em suas casas.
Por volta das 17h, quando os
músicos já se preparavam para começar o forró, dois carros da Polícia Militar
fecharam a passagem e impediram que o carro de som saísse. Houve entrevero
entre o comandante da guarnição da PM e o prefeito da cidade, Tarcísio Pedreira
(SD).
Enquanto o trio nordestino não
saía, o aposentado Osvaldo Soares, 66, não tinha a menor intensão de sair de
casa. Terminava de acender a fogueira junto com o filho Leandro, 15, e já bebia
o licor de jenipapo que ele mesmo produziu em seu sítio.
"São João para mim é isso
aqui, é encontrar os amigos. É entrar em uma casa, perguntar 'São João passou
por aí?' e beber um licor. Não é festa grande nem trio elétrico na rua",
diz.
Na cozinha, espigas de milho
cozinhavam em uma panela sob o fogão, enquanto as caixas de som tocavam um
antigo forró de Flávio José. Com as mãos escandidas para a fogueira, Osvaldo
bebeu mais um gole de licor e arrematou: "É o que eu sempre digo, a vida é
uma grande brincadeira. Posso não ter nada, mas tenho tudo nessa vida".
Por João Pedro Pitombo /
Folhapress