Férias escolares reacendem medo da fome em quem depende de merenda

 

A chegada das férias escolares nas escolas públicas de São Paulo levou as crianças de volta para casa junto com o medo da fome.

Sem merenda e com o fim do auxílio alimentação ofertado na pandemia, famílias que ainda não conseguiram recuperar o emprego e renda de antes voltaram a ter as doações como única forma de garantir comida na mesa.

Em Heliópolis, na zona sul da capital, todo dia, antes mesmo das 6h da manhã, uma fila de mulheres se forma em frente à sede da Cufa (Central Única da Favela). Elas chegam cedo para tentar conseguir algum alimento, já que as doações diminuíram nos últimos meses.

Na manhã em que a reportagem esteve no local, Aldeise Maria Batista, 70, era uma das primeiras da fila. Ela chegou às 5h45 para não correr o risco de voltar sem nada para casa. Naquele dia, ela conseguiu uma cesta básica e três garrafinhas de um achocolatado.

Avó de cinco netos, ela voltou para casa pensando em como iria dividir a bebida entre eles. "Eles moram bem pertinho de mim e vão todo dia comer comigo. Agora que não estão indo para escola, vão almoçar e jantar. Pelo menos o arroz com feijão está garantido", disse.

As doações ainda garantem o que cozinhar para os meninos, mas ela conta que está difícil comprar mistura. Antes, quando era depositado o dinheiro do cartão-merenda de dois netos, ela comprava frutas, legumes e alguma carne para complementar as refeições.

"Lá em casa, a gente tenta sempre ter uma salada ou cozido para comer com arroz e feijão. Quando dá, eu compro pé de galinha, pescoço ou moela para fazer um cozido, mas tem sido cada vez mais difícil", conta.

Em 7 de dezembro, a Prefeitura de São Paulo depositou a última parcela do cartão-merenda, que vinha sendo distribuído para cerca de 1 milhão de estudantes desde abril de 2020. O auxílio variava de R$ 55 a R$ 101.

Ainda que o valor fosse insuficiente para garantir uma alimentação adequada e saudável para as crianças, as famílias relatam que o fim do auxílio fará diferença no que vão botar na mesa nos próximos meses.

"No mesmo dia que o dinheiro caía, eu ia no mercado pra comprar as coisinhas que ele gosta e já acabava. Era comida só pra ele, banana, maçã, iogurte, bolacha. Agora, vai ser só quando voltar pra escola", conta Ivanice dos Santos, 42. O filho dela está no 6º ano de uma escola municipal do bairro e, por isso, recebia R$ 55 ao mês do cartão-merenda.

O menino só voltou a frequentar a escola todos os dias no meio de outubro e ficou desanimado quando as férias logo começaram. "Nunca imaginei que uma criança não ia ficar animada com as férias, mas ele sente falta da escola, pelos amigos, por sair de casa e também pela merenda."

Ivanice trabalhava como diarista e foi dispensada de todas as casas durante a pandemia. Mesmo com a retomada das atividades, até agora só duas a chamaram de volta. Assim, a única renda fixa da família é o salário mínimo que o marido ganha como auxiliar de limpeza.

Para as mães que são a única fonte de renda em casa, a chegada das férias é ainda mais complicada. Os olhos de Beatriz Roseira, 27, se enchem de lágrimas quando ela se lembra do período em que ficou com os filhos, de 5 e 9 anos, em casa sem ter o que comer.

"Tinha dias que acordava e não tinha R$ 1 nem para comprar pão. A gente só tinha arroz das doações para comer, meu medo é que eles voltem a passar por isso", conta. Desde que eles voltaram para as aulas presenciais, ela ficava mais tranquila por só ter que garantir o jantar, já que eles tomavam café da manhã e almoçavam na escola.

Ela conseguiu emprego em uma fábrica de bolos no início do mês e não vê a hora de receber o primeiro salário para conseguir dar aos filhos refeições com alimentos que não sejam só os da cesta básica. "A mais velha entende que a situação é difícil, mas o pequeno pede pra comer frango, salsicha e nem sempre consigo comprar."

Mãe solo de seis filhos, Elaine Torres, 34, passou a contar com a ajuda dos vizinhos para comprar leite para os gêmeos de 1 ano e 10 meses. Sua única renda era a venda de sucos na feira do Brás, mas o carrinho foi levado pela fiscalização no início do mês.

"Tiraram minha única renda, não tem mais auxílio e nem escola para as crianças comerem. Eu não sei como vou fazer nas próximas semanas, as crianças estão há dias sem comer uma fruta."

São famílias que voltaram ao grau de insegurança alimentar grave, quando têm uma dieta repetida, com diminuição de quantidade e qualidade. Em geral, fazem refeições com muito açúcar, sal e gordura, mas poucos nutrientes e proteínas.

"As doações de cestas básicas são muito importantes, mas o poder público não pode deixar que essas famílias vivam só com esses alimentos. A composição da cesta básica comum não garante uma alimentação equilibrada", diz Maria Paula de Albuquerque, gerente geral do Cren (Centro de Recuperação e Educação Nutricional) da Unifesp.

Segundo ela, dietas restritas podem levar as crianças a ficarem com baixo peso e estatura, mas também sobrepeso combinado com desnutrição. "Refeições que só tenham carboidratos ou ultraprocessados podem fazer com que as crianças engordem e mesmo assim fiquem desnutridas. Por isso, precisamos de uma política pública que cuide da alimentação delas durante as férias, é uma questão de saúde."

Durante as aulas, crianças de 0 a 3 anos, por exemplo, têm 70% de sua alimentação garantida pelas creches, já que fazem cinco refeições nas unidades por cinco dias da semana. Para alunos mais velhos, ao menos duas refeições são ofertadas pelas escolas, que, por lei, precisam ter ao menos 30% dos alimentos vindos da agricultura familiar.

Até mesmo a distribuição das cestas básicas para as famílias está em risco. Segundo Marcivan Barreto, presidente da Cufa São Paulo, com a inflação dos alimentos em alta, as doações caíram nos últimos meses.

"A gente conseguia atender mais de 600 famílias por semana com as doações que chegavam. Agora, a gente atende a metade. Além da inflação, as pessoas acham que as famílias voltaram a trabalhar e, por isso, não precisam mais de doação. Mas não é o que está acontecendo", diz.

Em nota, a prefeitura disse que o cartão-merenda foi encerrado porque as aulas voltaram a ser totalmente presenciais e assim a merenda escolar passa a ser fornecida diretamente nas escolas. Também informou que a partir de 10 de janeiro as crianças poderão participar do programa Recreio nas Férias, oferecido nos CEUs, onde podem receber alimentação.

Já a Secretaria Estadual de Educação informou que a oferta de merenda nas escolas estaduais foi até 23 de dezembro, quando se encerrou o ano letivo. Também diz que em janeiro, ainda sem data definida, dará início a um programa de recuperação nas unidades e irá disponibilizar alimentação aos alunos. As famílias, no entanto, devem fazer manifestação prévia para evitar o desperdício de alimentos.

Por Isabela Palhares / Folhapress

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